Fotografia: olhar da Carranca-Ricardo Araujo
Depois caiu a noite. No lusco-fusco da orquestra tocando Solamente una vez Pedro leiloeiro bateu o martelo, dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, Vendido, na existência roubada como cabrito assado enfeitado em laço e celofane na quermesse de paróquia dos preconceitos que viriam, era o começo de uma história. Ele vai dizer que não, nenhuma história fica pronta ao ponto de findar lembrança, isso lhe bastava por tudo que já não havia escrito, no mais a cerveja perdia espuma no balcão.
Frei Leto lhe vinha à memória com o colorido de seu sarcasmo franciscano e sua fisionomia jovial de Fradinho do Henfil.
O frade foi a primeira observação de que era possível viver com bom humor diante de dificuldades, o frei era feliz.
Ele se lembrava dos primeiros movimentos para superar a timidez, para recriar condução própria, tinha um caminho rumo ao mar, havia muito que aprender a andar, pois o Porque se faz é andando.
Enquanto a tarde morria, a nova classe média funcional passeava pela calçada esburacada de pedras portuguesas, na esquina da Duvivier com a Barata o universo cosmopolita girava em tour.
Na banca de revistas o sol e o vazio dos leitores modorrava.
_Ai de ti Copacabana! Ele pensava.
Depois do terceiro gole pousara o copo americano na bancada, e no silêncio interno de si mesmo, deu-se conta de que o tempo havia passado.
Já a muitos anos o Expresso Sayonara dobrara a esquina e contornara a praça Coronel Ramos rumo à estrada da memória, ao pó avermelhado do destino.
Chegada a hora de fazer o balanço geral dos sonhos nas contas da realidade, essa soberana implacável já reinara tempo bastante a se haver contar.
A vida se agrisalhara e a hora era essa, Ítaca sera passado, essa memória iluminada à luz de velas.
_Olha a vela...
_Olha a vela...
_Orai vela...
Serpenteava a procissão, enquanto os bolsos iam se enchendo com o peso das moedas. As notas miúdas daquela gente devota, também ela miúda e fervorosa, abasteciam a franzina fé financeira do menino. Eram os sonhos de brinquedo.
Enquanto a banda soprava um bombardino fúnebre e o surdo respondia com a dor das desumanidades, ele faturava sua própria infância mercantil.
_Olha a vela...
Diante da desventura do senhor morto, a alegria das primeiras mercancias era evidente naquele infante sem trono, sentia-se um gigante sem prumo.
Ele era diferente, haveria de o ser por toda a vida, estava descrito, era inevitável. Chamava atenção quando não queria, trazia a indiferença dos olhos na pele, nos passos, até nos ossos. Mas havia a esperança, a tecelã de todos os futuros.
A noite ardia à parafina.
_Senhor tende piedade de nós...
Como contar uma história cronificada de experiências e tentativas? O incerto fica encrustado por sobrevivência no inconsciente.
Como trazer o caminho à memória?
O apito do vapor aportara sua carranca trazendo rio acima a Bahia, Pernambuco, o Nordeste, a fome pendurada por cinco dias de farinha, de rede e lenha das caldeiras.
O burburinho geral no cais perfumava à boas vindas diante dos seus olhos.
Alguém haveria de chegar, algo haveria de acontecer, mas quem? O que?
Aquela gente morena, cansada e altiva, era tudo.
Subiam as barrancas do Chico buscando e trazendo vida, buscando e trazendo histórias, buscando e trazendo desejos. Eram pescadores, eram canoeiros, eram lavadeiras nas pedras, eram as lembranças do sabão Tingui, era o Brasil profundo, era ele, o próprio, trazendo na proa dos olhos o olhar dado das carrancas...
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